Palavras ao Vento Literatura

sábado, 27 de junho de 2015

O escritor




      Não acordou tão cedo naquela manhã; trabalhou até tarde no dia anterior. Estava cansado. Sua mulher já saíra para o trabalho. Tomou café, pegou um livro na estante – há muito esperando para ser lido – e voltou para a cama. O tempo e as páginas passavam.
      Foi quando bateram à porta do quarto; levantou-se de má vontade, pois naquele dia preferia não conversar com ninguém – já acordara assim. Ao abrir a porta viu que era a proprietária da pensão, que vinha entregar-lhe a correspondência. Agradeceu e fechou a porta.
      - Quem teria lhe escrito? - pensou.
     No envelope, acima do seu nome, leu: “Concurso Nacional de Contos”. O coração disparou.
      - A resposta! - pensou excitado.
    Para ele, dentro daquele envelope estava todo o seu mundo, toda a sua vida. Recostou-se na cama e com as mãos trêmulas começou a rasgar o envelope.
      - Calma! - disse para si mesmo – pode não ser nada... Pode ser apenas um aviso de que tinham recebido seu conto; afinal, haviam se passado apenas vinte dias, desde que o colocara no correio.
      Com este aviso de precaução pregado à porta de suas emoções e com mãos que faziam força para não tremerem tanto, abriu o envelope. Retirou a folha de papel e leu-a, apressadamente, pulando palavras, procurando captar somente o essencial: sim ou não? Ao final dessa apressada leitura não concluiu nada; ora parecia sim, ora parecia não. Leu-a outra vez, mais devagar... Leu-a mais três vezes até entender que era “sim” - inútil tentar descrever as emoções que tomaram conta dele neste momento; digamos apenas que sua mente girou. Ele nunca pensou seriamente nisso, isto é, é verdade que sempre desejou isso e muitas vezes já tinha ficado a imaginar como reagiria, caso isso viesse a acontecer. Mas, agora era diferente, estava ali, tinha acontecido e ele não sabia o que estava sentindo... Automaticamente, levantou-se da cama, com a carta na mão, parecendo que ia se dirigir a alguém dentro do quarto, mas, com a mão a meio caminho e a palavra impronunciada na boca, deu-se conta de que estava sozinho... Quis rir e riu um riso pequeno; quis rir alto, não conseguiu... Era apenas um riso contido, assim como contido fora o seu modo de vida. Sentou-se na beira da cama e leu novamente a carta. Depois, seguindo um impulso, levantou-se, abriu a porta e descendo as escadas foi até a cozinha onde estava a senhoria. Ela sabia daquela mania de escrever que ele tinha.
       - Ganhei o concurso! – falou, não contendo a alegria.
      - Pois olhe, pode parecer mentira, mas, quando peguei a carta na caixa de correspondência, imaginei logo que fosse isso, mas não quis falar nada; podia não ser...
     D. Matilde era uma boa mulher. Gostava daquele inquilino que ficava escrevendo até de madrugada, apesar de achar que ele vivia mais de sonho do que de feijão, como lera um dia num livro de escrito por um autor cujo nome só se lembrava de que era Lessa. Ela ficou alegre, também.
      Ele falou à beça, botando para fora toda aquela alegria que jamais havia sentido. Seu coração é que pensava, rindo do cérebro. Falou, falou e falou. Mas, ainda não era o bastante; ainda não esvaziara o coração e, além disso, D. Matilde estava ocupada fazendo o almoço e não podia dar-lhe a atenção de que precisava. Vestido como estava – ia pensar nisso, àquela hora? -, saiu e foi até a casa de um casal de amigos. Mal lhe abriram a porta, ele entrou e já foi dando a notícia de que havia ganhado o concurso – mostrava a carta amarrotada na mão - e começou a desfiar novamente a mesma história que havia contado na pensão. E por mais que falasse, mais tinha a dizer – embora repetisse sempre a mesma história; seu coração não se esvaziava, pelo contrário, a alegria jorrava de uma fonte inesgotável - “uma fonte de água viva”. Os amigos ouviam-no, enquanto ele falava andando de um lado para o outro, sem sossego. Eles ficaram alegres; gostavam de dele, embora achassem, às vezes, que ele vivia “sem os pés no chão”. Mas gostavam dele de verdade e, de verdade, gostaram da notícia.
      Ainda não era o bastante. Precisava telefonar para avisar outros conhecidos, amigos e pessoas queridas; sem pedir licença, sentou-se na poltrona, pegou o telefone e começou a discar. Fez mais de cinco ligações e todos ficaram alegres com a notícia, disseram que “estavam muito felizes por ele”. Ele sabia que era verdade, mas ele preferia saber disso olhando para os olhos das pessoas. Telefonou também para a Editora que promovera o concurso, precisava certificar-se de que havia entendido certo a carta. Confirmaram. Depois, novamente andando de um lado para o outro, continuou falando para o casal que, sentado no sofá, ouvia e assistia aquela manifestação primária de pura alegria. Coisa tão difícil de ver e mais ainda de não sentir inveja. Mas, aquele casal, não. Eram seus amigos de verdade e estavam alegres com a alegria dele; sentiam alegria por verem a Alegria personificada. Falou, falou e falou, mas, quando notou – e isso depois de muito tempo – que estava se repetindo, despediu-se.
      Com o peito em festa, saiu dali. Vagou pelas ruas, contente. Amava todo mundo. Lembrou-se de um amigo que era livreiro e foi até lá. Queria saber uma opinião abalizada, a respeito do valor de tal concurso; queria saber se tinha motivo verdadeiro, se podia “estar alegre como estava”. Talvez estivesse exagerando o acontecido. O amigo livreiro confirmou, parabenizando-o e só não ficou mais tempo ouvindo o amigo porque tinha os fregueses para atender - “amigos, amigos, negócios à parte”. Antes de sair da livraria, olhando todos aqueles livros nas estantes, veio-lhe à mente que o seu conto faria parte de um livro... Não era nem um livro “inteiro”...
      Voltou para a pensão. Viu D. Matilde na cozinha. Pensou em voltar a falar com ela, mas, além dela estar ocupada, achou que não tinha mais nada a dizer a ela. Ela que o procurasse se quisesse saber mais sobre o assunto – pensou.
      Já falara com todas as pessoas que conhecia, exceto com sua mulher que só chegaria à noite. Todas elas demonstraram-se alegres e felizes. Então, por que aquela alegria ainda enchia tanto o seu coração, chegando quase a doer?... Percebeu que depois de haver falado para tantas pessoas, nada havia se modificado... Sua alegria não diminuíra nem um pouco... Sempre ouvira dizer que “desabafando, passa”... . Quando desceu para o jantar, que era servido aos hóspedes na sala da pensão, ainda tentou tocar no assunto, mas D. Matilde, que estava sentada ao seu lado, puxando-o pelo braço, segredou-lhe ao ouvido que “não devia demonstrar que estava tão alegre assim; ficava parecendo criancinha”. Acabou o jantar em silêncio e depois subiu para o quarto.
      Ainda era cedo para a sua mulher voltar. Sentou-se na poltrona que ficava próxima à janela e ficou a olhar para os livros e rascunhos sobre a mesa, vendo neles a raiz de toda a sua alegria; mas, aos poucos, a alegria foi diminuindo, foi ficando menos escandalosa e mais íntima...
      - E ela que não chegava! - pensou, olhando para o relógio.
    Algo parecido com decepção foi chegando de mansinho, por entre as dobras de seus pensamentos. Qualquer coisa que se busca, como sendo a coisa mais importante da vida, quando é alcançada, não tem o gosto que se imaginou; os limites do imaginado são ultrapassados, nos deixando exaustos. Para ele aquilo estava sendo mais do que sua pequena taça podia conter.
      Finalmente sua mulher chegou. Ele abriu a porta e sem ao menos esperar que ela se acomodasse direito na poltrona, entregou-lhe a carta e ficou parado, esperando sua reação. Alice, sentada, descalçando os sapatos com as pontas dos pés, terminou de ler e fixando seus olhos em nele, perguntou:
         - Qual o prêmio?
      Tomado de surpresa, ele ficou confuso, não esperava aquele tipo de pergunta, não sabia o que responder. Como, “o que vai ganhar?!”... Será que ela não percebeu que seu conto ganhou o concurso? – Esse era o prêmio! Procurou, em seu cérebro confuso, palavras que estivessem à altura da alegria que estava sentindo e respondeu hesitante, gaguejante, sem ainda poder acreditar no que ouvira:
       - Vai sair publicado num livro... Tem, também, o Certificado...
      - Ah! Sim... - disse Alice, devolvendo-lhe a carta e recostando-se mais a gosto na poltrona, deu um longo suspiro e disse:
       - Puxa como trabalhei hoje! Estou morta!
      Com a carta já toda amarrotada na mão, deixou-se ficar sentado junto à mesa onde estavam seus livros e papéis. O brilho dos olhos, mostrando a alegria que vinha do coração, foi diminuindo, diminuindo... Os olhos ficaram pousados sobre os inúteis papéis e livros sobre a mesa.

      Madrugada. Na pensão, todos dormiam. Levantou-se da cama devagar, para não acordar sua mulher e foi até a janela aberta. Acendeu um cigarro. Ficou olhando a noite. Viu as estrelas, a lua... Olhou para si. Mais nada. Ficou mais um pouco à janela, o tempo de mais um cigarro. Depois, aproximou-se da mesa, puxou a cadeira e sentou-se. Pelo tato encontrou um pedaço de vela entre seus papéis; acendeu-a e, depois de deixar cair alguns pingos de cera sobre o fundo de um copo, fixou-a ali; empilhou alguns livros ao lado da vela acesa, de tal modo a fazer sombra sobre o rosto de Alice que dormia. Pegou da caneta e com o brilho novamente nos olhos, escreveu:

      - Era uma vez...



EP. Gheramer


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