Hoje quero falar dela.
Quando ela casou, levou dentro de si as imagens daquilo que seria um casamento, um marido e uma esposa.
Aos poucos, estas imagens foram sendo desgastadas com o contato com a realidade tão diferente que se lhe apresentava aos olhos – e aos sentidos interiores. Talvez a imagem que primeiro tenha se desgastado foi a do homem com o qual se casara e, depois, a do casamento, isto é, da vida a dois. Por último, vieram as que teriam consequências as mais desastrosas para si mesmo: a da esposa que não fora, porque não pudera ser. Escuridão e trevas a rodeavam.
Tudo isso podia ser suportado, menos a ideia de haver fracassado como mulher. Ela
não se perdoou assim como nenhuma mulher o faria. E assim, com estas três
imagens destruídas, teve início todo o seu drama, toda a sua frustração, todo o
seu abandono primeiro e, depois, toda a sua atividade desenfreada com a qual
procurava afastar de si o fantasma do carrasco cruel que fora a realidade para
com os seus sonhos de menina moça, tão sensível, tão meiga e tão sonhadora.
Tudo estava acabado. Assim lhe parecia. Entretanto, a vida continuou para ela.
Trevas
e escuridão a rodeavam. O abatimento e a tristeza caíram como a lâmina de uma
guilhotina. Entregue a si própria e impotente, dilacerou suas carnes numa ânsia
de não mais existir. Nessa busca frenética, desesperada e inconsciente,
transformou-se num farrapo humano. A tristeza imensa começou a destruir o seu
próprio corpo, pois, dentro dele não havia mais nada que o animasse e só o
aniquilamento total parecia o elixir para o seu mal. O mal de uma vida
malograda. Impossível descrever o ser em que se transformou. Só uma coisa a
mantinha viva: seus filhos ainda pequenos.
Para
eles se voltou. Eles precisavam dela, eles acreditavam nela, eles aceitavam seu
amor e respondiam com amor. Ali ela podia ver e sentir a alegria ingênua de
viver e que um dia sentira em si mesma. A eles se entregou, fez deles a sua
razão de viver, no contato diário com espíritos ainda não endurecidos e
deformados, passou ela a viver. A chama ainda não se apagara totalmente.
Trancou-se para o mundo sujo que quase a destruíra e daí tirou forças, pouco a
pouco.
O
tempo passou, os filhos cresciam e também crescia dentro dela a consciência de
ser uma pessoa sozinha.
Do
seu espanto e, sobretudo, do seu orgulho ofendido tirou forças e animada por um
desprezo infinito, separou-se dele. Rasgou todos os laços, renunciou a ele,
como se fosse apenas poeira e lama – tudo isso para esmagar seu sedutor com sua
grandeza de alma, para ter o direito de desprezá-lo enquanto vivesse.
Ela
começou a sonhar com uma espécie de céu na terra; era de uma credulidade sem
limites e se mais tarde adoeceu foi porque se enganara com seu marido. Seu
companheiro se degradara e lhe cuspira em cima - a humilhara. Seu espírito
romântico não pode suportar isso. E, além disso, a ofensa. Em vez de pão ela se
alimentava com seu delírio rancoroso.
Mas
isto foi antes. Muito antes de eu conhece-la.
No
princípio até que me envaidecia; uma mulher querendo-me só para ela e
incomodando-se com a companhia de meus amigos, fossem homens, fossem mulheres.
Possessiva era a palavra correta para defini-la. Como disse isso me envaidecia
e, principalmente, por estar eu cheio de um imenso sentimento de rejeição, que
então me dominava.
Aos
poucos, com o passar do tempo, apaixonei-me por esta mulher. E comecei a
querê-la mais tempo ao meu lado – aquilo que antes ela queria, agora era eu que
queria. Porém, em virtude de certa circunstância, ela não podia dedicar-me mais
tempo e eu, já desligado de todas as minhas relações de amizade, voltei, aos
poucos, a me sentir rejeitado, isto é, comecei a achar que não estava sendo
correspondido, tal como ela devia sentir-se no início quando reclamava meu
tempo total para ela. O impasse estava criado.
Esta
situação veio se arrastando nos últimos tempos, até que percebi – como sempre,
tarde demais – que nunca houvera qualquer intenção da parte dela, em manter uma
relação mais próxima. Tudo o que ela sempre quis, e sempre soube querer, foi
uma relação paralela.
Mas,
por que isso? Eu me perguntava. De seu comportamento obsessivo, não era de se
esperar que quisesse uma relação permanente?
Bem, mas há uma coisa que eu não havia pensado: seus filhos e a
segurança de uma vida materialmente boa. Ela podia ter as duas coisas ao mesmo
tempo: eu e uma vida ao lado deles – separadamente.
Diante
disso, eu não posso ser possessivo se quiser continuar com ela e nem ela o pode
ser, uma vez que nossa ligação é morna e inalterável.
Por
outro lado, posso eu aceitar isso, agora que fiz esta tardia descoberta? Agora
que sei que nossa ligação terá sempre um gosto de escondido? De brincadeira, de
passatempo?
Mas,
quais teriam sido as suas reais intenções, desde o início? Será que sempre
soube que seria assim? E se sabia, por que não me disse? E se não sabia, o que
a levou a isso? Ou será que tudo foi sincero desde o início e somente depois,
com o aumento afetivo em nossa ligação é que surgiu o impasse?
São
perguntas para as quais ainda não encontrei uma resposta satisfatória e
convincente.
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