Muito tempo se passara
desde aquele dia em que Alves¹ descia pela estrada, enquanto o sol se punha por
trás da grande rocha. Fora neste tempo que conhecera Pafúncio; estava deitado à
beira da estrada; podia-se notar pelo aspecto de seu pelo grisalho e da boca
sem dentes, que já estava velho e a julgar pelo sua magreza, há muito não comia
ou, se comia, comia pouco. À sua passagem, nem a cabeça ele levantou e nem o rabo
balançou. Estava velho, não queria mais brincar; só precisava comer. Alves
passou por ele... Passou, mas voltou. Não tinha nada para lhe dar, além da água
que retirou de seu cantil e deitou sobre a mão em concha junto ao focinho
murcho, que foi bebida com sofreguidão. Alves passou a mão sobre sua cabeça,
alisando os pelos, agora cinza. Ainda olhou à sua volta à procura do dono, mas
não viu ninguém. Depois, levantou-se e reiniciou a descida para a praia. Só
dera alguns passos quando percebeu que o cão andava a seu lado.
Não sendo exigente,
pois suas necessidades eram somente as básicas, não demorou a encontrar uma
casa que pode comprar com o dinheiro da venda do apartamento na cidade e ainda
lhe sobrara algum. Ficara satisfeito. Estava onde queria e tinha o precisava.
Fora quando de sua
ida ao cartório na cidade, para passar a escritura para o seu nome, que
aproveitou para visitar seu amigo, o Velho, que deixara no hospital e ficara
sabendo do seu falecimento. Estivera entregue a essas lembranças, enquanto estavam
sentados os dois na areia, a olhar o mar naquela manhã após o café.
A essência de seus
pensamentos quanto à realidade que percebia no mundo ao seu redor, em nada
havia mudado. Antes, pelo contrário, graças à lucidez que alcançara, só viera transformar
o que antes eram somente dúvidas, naquilo que agora eram certezas firmes.
Como se as cortinas
de um grande palco fossem levantadas repentinamente, Alves se lembrou de quando
o segundo milênio estava tão perto e os técnicos tiveram que reprogramar milhões
de computadores. Se não fossem reparados a tempo, eles iriam simplesmente parar
de funcionar quando 1999 virar 2000. Muitos podiam dizer: e daí? Por que todo
este estardalhaço em torno do fim iminente do milênio? Afinal não passava de um
marco arbitrário.
E quando olhava para
o passado mais distante, notáveis eram as mudanças que os homens esperavam da
vida. Quando o primeiro milênio chegava ao fim, alguns europeus previram o
apocalipse. Peregrinos fizeram procissões de penitência, guerreiros bradavam juras
de paz a multidões em êxtase. Mas, quando ano 1001 chegou, milhões de pessoas
não ficaram sequer sabendo, ou pouco se importaram. Poucos conseguiam ler seus
próprios nomes, quanto mais um calendário. Comer era a preocupação mais
premente. Apesar da melhoria do clima e de inovações na agricultura, as
colheitas mal davam para o consumo. O sistema feudal, que forçava os camponeses
a dividir a produção com seus senhores, tornava ainda mais difícil evitar a
desnutrição.
Em comparação com os
camponeses, presos por lei à terra de que não podiam ser donos, os moradores
das cidades – comerciantes e artesãos, saltimbancos e ladrões – levavam uma
vida de liberdade vertiginosa. Altas muralhas os protegiam contra ataques de
bárbaros e de exércitos mercenários.
A Humanidade era formada
por uma mistura de pequenos reinos recém-saídos da caótica Era das Trevas que
se instalou no século IV. A Europa era um lugar bem atrasado em 1001.
Perdera-se boa parte da herança greco-romana de refinamento cultural e
conhecimento tecnológico. A erudição confinava-se em alguns mosteiros esparsos.
Embora os nobres e uma burguesia nascente começassem a ler, os livros eram
escassos.
Tais
acontecimentos eram vistos por uma fenda no tempo, claramente como num filme,
diante dos olhos de Alves, enquanto estava ali sentado com Pafúncio.
Ele
percebia o maravilhoso mundo que fora criado, mas os homens daquela geração
eram ruins, e a maldade foi a causa da destruição dessa grandiosa obra divina. De
nada valeu a inteligência herdada de seus antepassados; de nada ajudaram as
descobertas no campo da técnica e indústria, agricultura, economia e música. Ao
contrário, dia-a-dia aumentava a sua decadência moral.
Com
o progresso das descobertas e a civilização, agravaram-se seu orgulho e sua procura
dos prazeres dos sentidos, sobretudo sexuais e a eles se entregavam; e mais
eles se aperfeiçoaram com instrumentos mortíferos e destrutivos.
Quem conhecesse a
história da vida de Alves, diria que ele era a prova viva de que o homem tem
forças morais suficientes para conservar sua integridade ética em todas as
circunstâncias da vida, e não precisa sucumbir às influências malévolas e
prejudiciais do ambiente em que vive.
Liberdade... Há
muito os homens viviam de palavras vazias nos discursos abstratos...
Aos olhos de Alves,
aí é que estava o conflito entre o homem e a realidade.
EP. Gheramer
(1) Alves é o nome do personagem principal do livro
“Identidade”, do mesmo autor, publicado em 20 de agosto de 2015.
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